sábado, 22 de agosto de 2009

Terceiro Setor ou Setor Terceirizado? por Arnaldo Motta*



Um dos fenômenos marcantes destes últimos tempos, caracterizados por intensas transformações, é o da globalização.


Muito se fala nos benefícios deste panorama, que se traduziria no aumento de oportunidades para as pessoas de um modo geral. Igualmente se diz das mazelas a que fica submetida a, cada vez, maior parcela da população. Essa diferença reflete uma divergência de opiniões pautadas em concepções distintas, ou seria um resultado paradoxal deste momento de mudanças?


Queremos chamar a atenção sobre um aspecto deste cenário polêmico: as mais diversas correntes do pensamento atual falam sobre a emergência das ONGs e do chamado Terceiro Setor. Se todos concordam com a importância deste fato, o mesmo não acontece com a avaliação sobre a função que o mesmo vem desempenhando em nossa sociedade. Assim, consideramos oportuna a discussão sobre este tema, trazendo para reflexão algumas das diferentes abordagens existentes sobre as ONGs e o Terceiro Setor. Pretendemos enfocar, ainda, o papel do profissional que atua neste Setor, pois acreditamos que através dele é que as idéias envolvidas neste campo ganham objetivação.


Para alcançar o objetivo acima optamos por fazer uma “colagem” de alguns textos publicados sobre o tema com origens distintas: no próprio Terceiro Setor, na pesquisa acadêmica sobre movimentos sociais e na militância.

O que é o Terceiro Setor?
Cardoso (1997) faz uma analogia com a noção de Terceiro Mundo, para elucidar a pergunta acima. “Nos anos 50, vivíamos uma situação conceitualmente semelhante ao que vivemos hoje. Todos sabiam o que era Primeiro Mundo, o conjunto dos países capitalistas avançados; todos sabiam o que era Segundo Mundo, a área socialista; e havia algo mais, uma realidade nova em formação que não era nem uma coisa nem outra. A essa realidade emergente chamou-se então Terceiro Mundo... No momento inicial, no entanto, quando nos referíamos ao Terceiro Mundo afirmávamos uma idéia de diferença, de autonomia, de independência em relação aos dois primeiros mundos já claramente estabelecidos” (p. 7). Para a autora, essa referência parece oportuna “na medida em que essa idéia de independência é também o que caracteriza essa nova realidade constituída pela emergência dos cidadãos e de suas organizações como atores do processo de consolidação da democracia e do desenvolvimento social. Recorremos hoje à expressão Terceiro Setor para distingui-lo do primeiro, que é o setor público, e do segundo, representado pelas atividades lucrativas.” (p. 8).


Fernandes (1997) faz um percurso diferente para chegar à expressão Terceiro Setor que teria sido “traduzida do inglês (third sector) e que faz parte do vocabulário sociológico corrente nos Estados Unidos” (p. 25). Uma das principais formas de atuação deste setor, seria através das organizações não-governamentais (ONGs), expressão vinda da Europa, “cuja origem está na nomenclatura do sistema de representações das Nações Unidas. Chamou-se assim às organizações internacionais que, embora não representassem governos, pareciam significativas o bastante para justificar uma presença formal na ONU” (p. 26). Para o autor “o termo ‘ONG’, no Brasil, está mais associado a um tipo particular de organização, surgida aqui a partir da década de 1970... que dava ênfase à dimensão política de suas ações, aproximando-as do discurso e da agenda das esquerdas” (p. 26), em função do período autoritário de então. Fernandes considera mais abrangente falar de organizações da sociedade civil (OSCs), pois “recuperada no contexto das lutas pela democratização, a idéia de sociedade civil serviu para destacar um espaço próprio, não-governamental, de participação nas causas coletivas. Nela e por ela, indivíduos e instituições particulares exerceriam a sua cidadania, de forma direta e autônoma...

Marcando um espaço de integração cidadã, a sociedade civil distingue-se, pois, do Estado; mas, caracterizando-se pela promoção de interesses coletivos, diferencia-se também da lógica do mercado. Forma-se, por assim dizer, um ‘Terceiro Setor’ ” (p. 28) ... que no Brasil emprega mais de 1 milhão de pessoas e envolve montante financeiro na casa de centenas de milhões de dólares (p. 27/28) .
Os autores citados, percorrem caminhos distintos para chegar à formulação do conceito de Terceiro Setor. Ambos apontam, no entanto, características comuns ao termo como por exemplo: que se trata de um fenômeno novo e em formação, e que se diferencia dos outros dois setores já caracterizados, sendo o primeiro o do Estado e o segundo relativo ao da iniciativa privada. Os autores citados também ressaltam a característica de autonomia e independência deste Terceiro Setor em relação aos dois outros setores mencionados. Um outro aspecto apontado diz que esse Terceiro Setor é composto de indivíduos e organizações que atuam com o foco em interesses coletivos.


Se o momento atual é de transformação, e o Terceiro Setor vai se caracterizando como um fenômeno que surge neste contexto, parece oportuno ampliar o olhar para campos correlatos, como forma de buscar alguns subsídios que nos auxiliem na reflexão sobre o objeto em questão.

O panorama
Nos movimentos sociais urbanos no Brasil, nos anos oitenta, vemos a consolidação de três frentes importantes: os sindicatos, os movimentos populares comunitários e o movimento estudantil cuja retomada contribuiu significativamente para a mudança no cenário político da repressão.
Na década seguinte, com a abertura democrática conquistada, aliada à abertura da economia e ao processo de enxugamento do Estado, tivemos um refluxo significativo no movimento sindical. A chegada de grandes empresas com a conseqüente busca pela competitividade global e a voracidade em conquistar mercados, redirecionaram as bandeiras sindicais. A luta por melhores condições gerais de trabalho e de salário foi transformada em negociações para a manutenção do emprego.
Os movimentos comunitários, bastante atuantes nos anos oitenta na luta por melhores condições de vida, perderam um dos seus principais apoios. A igreja reviu a sua participação engajada junto às comunidades ao mesmo tempo em que redirecionou suas prioridades de financiamento para os países do Leste Europeu.


Ou seja, as bandeiras democráticas foram conquistadas, o significativo aumento do desemprego mudou a pauta das reivindicações dos trabalhadores, e os movimentos de origem comunitária perderam um apoio político e financeiro importante que vinha da igreja. Concomitantes a estes três aspectos, chegaram, nos anos 90, as fundações vinculadas a empresas multinacionais, com propostas de intervenção social, impregnadas da cultura de resultados, compatível com o espírito empresarial.
A agenda social se tornou pragmática, voltada para ações concretas e pontuais, sem ênfase na reflexão e conscientização política, possibilitando grande adesão de setores da classe média e trazendo a questão da cidadania como um novo e importante valor a ser cultivado.


O surgimento do Terceiro Setor, a partir do cenário traçado acima, remete à “reconstrução das utopias sociais transformadoras, tão caras à sociedade enquanto fatores de motivação e de mobilização das ações sociais coletivas, mas ausentes neste final de século devido à queda dos muros e regimes que sustentavam algumas delas... Nesse processo, observa-se o desenvolvimento de outra concepção na sociedade brasileira, a de cidadania, tratada agora não apenas como categoria individual mas também coletiva... onde o conflito social deixa de ser simplesmente reprimido ou ignorado e passa a ser reconhecido, posto e reposto continuamente em pauta nas agendas de negociações... Resgatam-se regras de civilização e reciprocidade ao se reconhecer como detentores de direitos legítimos os novos interlocutores: grupos de favelados, de mulheres discriminadas, de crianças maltratadas, de ecologistas militantes, de sem-terra e/ou sem-teto, entre outros” (Ghon, 2002:301/2).



Um novo paradigma de ação social
Juntamente com a essa nova concepção de cidadania que se reflete no surgimento do chamado Terceiro Setor, Ghon (2002) cita Razeto, para falar em um, também novo, paradigma da ação social coletiva que diz que “a ação reivindicativa tradicional, presente nos movimentos sociais dos anos 80, transformou-se em ações solidárias alternativas, nos quais se parte de necessidades que devem ser enfrentadas coletivamente e não apenas demandadas. Os demandatários serão também os executores da implantação e da gestão do serviço reivindicado” (p. 314). Ghon segue dizendo que “tais ações deixam de se estruturar como movimentos sociais e passam a ser articulados em grupos organizados, com certo grau de institucionalidade” (p. 314/5). Neste momento as ONGs passam a ter um papel essencial, na implantação das políticas sociais ditadas por um Estado que, no seu processo de enxugamento, vem se retirando do papel executor de serviços, para priorizar a função de repassador de recursos. As ONGs. desta forma, “saíram da sombra, deixaram de ser meros suportes técnicos em orientações tidas como ‘pedagógicas’ e financeiras às lideranças populares, e passaram, elas próprias, a desempenhar os papéis centrais nas ações coletivas” (p. 315). Assim, as ONGs passam a ser o principal elemento viabilizador das políticas sociais ditadas pelo Estado e igualmente responsáveis pela implantação dos projetos sociais financiados pelas fundações empresariais. Operando através de projetos, as ONGs passam a ser demandadas no que diz respeito à eficiência, como forma de garantir a sua ‘sustentabilidade’. Justifica-se assim, um ritmo alucinante de trabalho que desemboca na chamada “fazeção”, ou seja, no cumprimento exaustivo de exigências que não deixam espaço para a reflexão.


“Nos locais onde havia movimentos organizados, o novo paradigma da ação social tem gerado redes de poder social local. Estas redes são formadas pelas lideranças dos antigos movimentos, por uma base militante pequena, que agora assume o papel de responsável por etapas ou processos dos projetos em andamento, e por técnicos das ONGs, profissionais ... atuando como assalariados, num campo de trabalho pouco preocupado com as questões ideológicas ou político partidárias, e mais preocupado com a eficiência das ações, com o êxito dos projetos, pois deles depende sua continuidade e, portanto, seu próprio emprego. Nos locais onde não havia movimentos organizados nem população minimamente aglutinada em torno de interesses coletivos, os novos ‘programas sociais’ de parceria têm se implantado como ‘serviços sociais’, ou seja não como direito mas como prestação de serviço, despolitizando totalmente os programas, desvinculando-os de qualquer conteúdo político, retrocedendo à problemática da cidadania de seus termos coletivos para os antigos patamares da cidadania individual” (Ghon, 2002 : 315/6).


Ou seja, a descrição de alguns reflexos no campo dos movimentos sociais – resultado da atuação das ONGs nos anos 90, que permitiriam falar em um novo paradigma de ação social – parece não contemplar o que foi descrito anteriormente como sendo uma nova concepção de cidadania. Como vimos, esta última remeteria a uma cidadania coletiva, colocando-se como uma possibilidade de reconstrução das utopias sociais. Já o que foi colocado como novo paradigma de ação social tem levado a um retrocesso a antigos patamares da cidadania individual. Esta aparente desconexão entre concepção de cidadania e paradigma de ação social estaria expressa na metodologia de trabalho das ONGs, implementada através de seus técnicos que vieram ocupar o lugar dos antigos militantes. Há quem afirme, no entanto, que os antigos militantes da esquerda não perderam o seu lugar para outros profissionais. Eles teriam sido cooptados pelas ONGs.


Militância e ONGs
Para Petras (2000) “é sintomático que haja pouca crítica sistemática da esquerda acerca do impacto negativo das ONGs. Esse fracasso se deve em grande parte ao sucesso das ONGs em substituir e destruir os movimentos de esquerda organizados e cooptar seus estrategistas intelectuais e líderes organizacionais” (p. 177). O autor continua afirmando que “as ONGs tornaram-se, em todo o mundo, o último veículo de mobilidade vertical para as ambiciosas classes instruídas: universitários, jornalistas e profissionais liberais abandonaram suas incursões iniciais dos movimentos esquerdistas, pobremente recompensados, por uma carreira lucrativa dirigindo uma ONG, levando com eles as suas habilidades organizacionais e retóricas, bem como um certo vocabulário populista... Os líderes das ONGs são uma nova classe que não se baseia em propriedades pessoais ou em recursos governamentais, mas vivem de fundos imperiais e de sua capacidade de controlar grupos populares significativos”. (p. 178). Tais profissionais estariam mais familiarizados e gastariam mais tempo com lugares no exterior, onde acontecem conferências internacionais sobre pobreza, do que com suas lamacentas aldeias de seu próprio país.


Em sua análise crítica, Petras percebe que “essa realidade contrasta com a imagem que os funcionários das ONGs têm de si mesmos. Segundo seus despachos de imprensa e discursos públicos eles representam uma terceira via entre o ‘estatismo autoritário’ e o ‘capitalismo selvagem de mercado’: descrevem-se como a vanguarda da ‘sociedade civil’ atuando nos interstícios da ‘economia global’” (2000:179).


A atuação destes profissionais se dá, como já mencionamos, através de projetos que se baseiam nas diretrizes dos agentes financiadores. Tais diretrizes geralmente são pontuais e pretendem criar “modelos sustentáveis” para serem replicados, o que raramente acontece. Apesar dos resultados positivos consubstanciados por processos avaliativos, os projetos dificilmente têm continuidade, pois estão sujeitos às constantes alterações de prioridades determinadas pelos fundos sociais. Desta forma, as ONGs desmobilizam a população e fragmentam os movimentam sociais. “Em troca, muitos ex-membros de ONGs acabaram dirigindo agências governamentais ou até se tornaram ministros com títulos de ressonância popular” (Petras, 2000:183).


O perfil do profissional das ONGs que Petras apresenta pode parecer, para alguns, uma generalização grosseira. Nem por isso tais pontos devem ser descartados, pois o histórico anterior de participação e militância em movimentos de esquerda faz parte de um número significativo dos atuais profissionais do chamado Terceiro Setor. Através destes é que se dá a inserção das ONGs junto às comunidades menos favorecidas, e é o resultado prático destas ações que tem evidenciado a desconexão entre o conceito de cidadania coletiva e do paradigma de atuação social que acompanham o surgimento do chamado Terceiro Setor.

Conclusão
É inegável a importância do surgimento das ONGs e do chamado Terceiro Setor como um fenômeno dos anos 90 que remete a novas formas de relação entre os indivíduos e seus coletivos e o Estado e a iniciativa privada. Observa-se neste processo o surgimento e a ampliação da participação cidadã e a possibilidade da reconstrução das utopias sociais transformadoras. Ressalta-se a autonomia e a independência do Terceiro Setor em relação aos outros Primeiro e Segundo setores e fala-se, inclusive, do volume financeiro que mobiliza e no número de empregos surgidos com as iniciativas advindas deste campo.


No entanto, corre-se o risco de alguns equívocos, se não se situar as características apontadas acima de forma crítica, trazendo alguns elementos que permitam ampliar o panorama descrito. Assim, cabe acentuar que as diretrizes e financiamentos de grande parte das ações e projetos do Terceiro Setor provêm do Estado e/ou das fundações vinculadas às empresas do Segundo Setor. Esse dado por si é bastante questionador da pretensa autonomia e independência do Terceiro Setor em relação aos dois outros setores. Outro aspecto que não deve passar despercebido é que o razoável montante financeiro mobilizado, assim como os empregos gerados pelas atividades do Terceiro Setor, vêm concomitantemente com os recordes de arrecadação pelo Estado e com os significativos aumentos nos excedentes financeiros auferidos pelas grandes empresas, aliados ao substancial aumento de demissões observadas nos dois primeiros setores . Mesmo a proliferação de ONGs, cujo número não pára de crescer, não tem resultado em melhoria das condições de vida da população em geral. Pelo contrário, o cenário das ruas das grandes cidades do Brasil atesta a fragilidade do impacto de projetos desenvolvidos dentro da cultura do Terceiro Setor.


Ao não levar em conta os aspectos levantados acima, entre outros, o profissional do Terceiro Setor, vive uma dissociação entre os ideais que permeiam o seu trabalho, e o resultado prático de suas ações. Na medida em que é através deste profissional que as ações das ONGs se dão, cabe a este manter uma crítica permanente à sua atuação questionando-se, no mínimo, a respeito dos fundamentos que conceituam os projetos a serem executados, assim como a origem do financiamento dos mesmos.
A diferença entre a ação consciente e a “fazeção” alienada está na possibilidade da reflexão crítica por parte dos seus atores, que deve incluir a dimensão política. Caso contrário existe o sério risco deste importante fenômeno emergente no cenário mundial, chamado Terceiro Setor, se transformar em um mero executador de tarefas ditadas pelos Primeiro e Segundo Setores, ao que seria melhor então, designar-se Setor Terceirizado.

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Referências bibliográficas
Cardoso, R. (1997). Fortalecimento da Sociedade Civil. In: Ioschpe, E. B. (org.) (1997). 3º Setor Desenvolvimento Social Sustentado. Rio de Janeiro : Editora Paz e Terra, p. 7-12.

Fernandes, R. C. (1997). O Que É o Terceiro Setor?. In: Ioschpe, E. B. (org.) (1997). 3º Setor Desenvolvimento Social Sustentado. Rio de Janeiro : Editora Paz e Terra, p. 25-33.

Ghon, M. G. (2002). Teoria dos Movimentos Sociais. São Paulo : Edições Loyola. 3ª edição.

Petras, J. (2000). ONGs ao Serviço do Imperialismo. In: Petras, J.; Weltmeyer, H. (2000). Hegemonia dos Estados Unidos no Novo Milênio. Petrópolis : Editora Vozes, p. 176-195.



* Arnaldo Motta é consultor e facilitador de processos, e psicólogo formado pela PUC/SP, membro analista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA) e mestre em Psicologia Social pela PUC/SP. Participou da implantação de projetos inovadores voltados para pessoas portadoras de transtornos psíquicos graves e fundou, em 1989, junto com técnicos, usuários de serviços de saúde mental e familiares, a Associação Franco Basaglia. Lá, desenvolveu o Projeto Trabalho. Algumas das reflexões sobre esse projeto foram publicadas em 1997 no livro “A ponte de madeira”. No Instituto Fonte, é coordenador do programa O Campo Social em Debate.